Velhos conhecidos dos cerca de 68 milhões de pessoas moram em condomínios no Brasil, segundo a Associação Brasileira de Síndicos e Síndicos Profissionais, os problemas de convívio em prédios e outras unidades habitacionais coletivas costumam ser resumidos aos chamados “cinco cês”: cachorro, carro, cano, criança e calote. Por trás de cada um deles, dilemas do dia a dia que são as principais causas de dores de cabeça para administradores e condôminos, como questões relacionadas a regras de uso de espaços comuns, acessibilidade, barulho, infraestrutura e realização de obras. Transtornos que, agora, foram potencializados por um sexto “cê”. Ocorre que, desde 2020, a Covid-19 se impôs como um desafio adicional para a boa convivência entre vizinhos.
Em resposta à maior emergência sanitária dos últimos cem anos, síndicos se viram obrigados a adotar uma postura ainda mais cuidadosa em relação ao bem-estar, saúde e segurança de funcionários e moradores. A pandemia obrigou, por exemplo, a adoção de medidas restritivas a fim de limitar a circulação de condôminos em espaços comuns, interditando ou determinando novas regras de uso de áreas como piscinas, playgrounds, salões de festas e salas de jogos. Decisões que muitas vezes esbarram na resistência daqueles que, em vez de protegidos, se veem prejudicados diante dessas novas e necessárias medidas. E o efeito imediato desse choque são reiteradas discussões e repetidos desentendimentos, tornando o convívio menos harmonioso.
Em 2020, durante um dos momentos mais severos da pandemia no país, quando o sistema de saúde colapsou em boa parte dos Estados, a médica Lilian Mara, 52, precisou lidar com esse tipo de situação, chegando a se indispor com vizinhos que insistiam na abertura da academia que funciona no condomínio em que ela vive.
À época, em entrevista a O TEMPO na qual falou da perda de sua mãe, a ultrassonografista lembrou que, diante das exigências que pipocavam no grupo de WhatsApp de moradores, não viu alternativa a não ser se posicionar enfaticamente sobre o assunto. Contudo, nem mesmo as explicações sobre a singularidade do momento vivido convenceram os vizinhos. Lilian, então, apelou para uma postura ainda mais didática: “Falei que, se houvesse a reabertura, eu, que estava na linha de frente, seria a primeira a usar esses equipamentos”, contou, citando que só assim a discussão foi encerrada e os moradores se convenceram de que ainda não era o momento para a reabertura do local.
Os usos de espaços compartilhados ainda são motivo de desgaste para Ricardo Érico de Almeida, 59. Vindo de Diamantina, ele mora e é um dos três conselheiros condominiais em um prédio inaugurado há cinco anos em Belo Horizonte. “É complicado. São 56 unidades dentro do edifício, então conciliar o gosto de todo mundo não é fácil”, comenta, informando que a gestão do espaço é feita por um síndico profissional. “O foco de atrito são as regras para utilização de espaços, o que pode e o que não pode. Tem gente que não pergunta e vai fazendo. E, quando é feita uma advertência, acha ruim. Então tem esse tipo de conflito”, pontua, assegurando que, fora isso, ainda não presenciou nada de muito grave. “Felizmente, não tenho inimizades no prédio. E espero continuar assim”, brinca.
Trabalho e educação remotos expuseram problemas antes invisíveis
Além dos conflitos gerados por discordâncias sobre regras de uso de espaços comuns, a pandemia contribuiu para que questões que não eram um problema se tornassem fonte de inesgotáveis entreveros. Por exemplo, o barulho de uma obra realizada no horário comercial, o choro de uma criança ou os latidos de um cachorro pouco incomodavam aqueles que passavam o dia fora de casa. Porém, diante de uma maior adesão aos regimes remotos de trabalho e de aprendizagem, esses ruídos passaram a ser notados, gerando um mar de reclamações e disputas.
“Tenho um vizinho que tem mais gatos que filhos, e isso acaba incomodando, assim como os latidos de cães”, reconhece Renato Pedro de Souza, 49. Com o tempo, o belo-horizontino até aprendeu a lidar com esse inconveniente. Há outra questão, porém, que o tira do sério. “O pior mesmo é quando alguém para em frente à vaga de garagem, o que causa um grande transtorno. Estas são as situações que mais geram atritos, mas, mesmo assim, com um pedido de desculpas, fica tudo bem”, reconhece.
Profissionalismo é a solução
Para Ingrid Zenatti, diretora de marketing da empresa TownSq, especializada em soluções tecnológicas para a administração de condomínios, a resposta para boa parte dos impasses vivenciados entre vizinhos e entre moradores e gestores passa por uma comunicação mais assertiva.
“A gente ainda vê soluções arcaicas sendo implementadas. Ocasionalmente vemos histórias de prédios em que os recados são afixados nos elevadores. E alguns desses recados, de forma muito amadora, podem até expor um morador e gerar uma disputa judicial. Sem dúvida, esta não é a melhor maneira de estabelecer um sistema de comunicação eficiente”, avalia.
No extremo oposto, Ingrid lembra que o uso de ferramentas tecnológicas de maneira acrítica pode tornar o convívio ainda mais complicado. Ela lembra ser comum, por exemplo, o uso de aplicativos de conversa, como o WhatsApp, para reunir condôminos. “O problema é que essas ferramentas não foram pensadas para um ambiente complexo como um condomínio. Nessas plataformas, informações importantes para todos podem se perder enquanto assuntos diversos – e que nada têm a ver com os problemas reais daquela comunidade – podem ganhar protagonismo”, diz.
“Para minimizar esses problemas de convivência, acredito ser fundamental pensar a comunicação interna, como as grandes empresas fazem. Basicamente, é importante dar o direcionamento correto diante de uma queixa, e é crucial deixar claro o que é ou não aceitável naquele espaço”, aponta. Se problemas avançam, “acionar um mediador de conflitos pode ser uma estratégia”, sugere, lembrando que, em última instância, cabe ao síndico acionar a polícia ou o Judiciário para conter algum tipo de excesso.
Ingrid sustenta que o uso de tecnologia projetada especificamente para as dinâmicas de um condomínio pode reduzir os tantos problemas de convivência nesses espaços. Citando que o TownSq, que tem sede em Porto Alegre, na região Sul do país, e em Dallas, nos Estados Unidos, atende mais de 14 mil condomínios e cerca de 2 milhões de casas e apartamentos, ela comenta que, em Minas, após a pandemia, o uso de recursos de reserva para utilização de espaços – como horário para frequentar academia ou piscina – aumentou 103%. Já o volume de notificações de entrega de produtos subiu 80% no Estado. “Esse tipo de solução permite uma redução da circulação, o que é desejável no atual momento, e otimiza as dinâmicas sociais, evitando choques e desentendimentos”, aponta.
Dinheiro
Outro fenômeno contribui para acirrar os ânimos. Administrados por mais de 421 mil síndicos, sejam eles profissionais ou não, estima-se que esses condomínios movimentem cerca de R$ 165 bilhões por ano no Brasil. Com a redução de jornada e de salários em diversas atividades profissionais, a renda média mensal dos residentes de condomínios de casas e apartamentos caiu, e, com isso, as taxas condominiais passaram a pesar ainda mais no bolso. Como consequência, houve um aumento da desconfiança de todas as partes. De um lado, os administradores temem os calotes, e, de outro, os moradores passam a exigir maior transparência nos gastos condominiais e se queixar mais recorrentemente de despesas com as quais discordam.
Ingrid Zenatti defende que esse tipo de problema também pode ser solucionado pelo uso de ferramentas tecnológicas que permitam mais transparência em relação a contas e tomadas de decisão. “Ter ambientes virtuais para verificar despesas e para participar das decisões, como por meio de enquetes, tende a ser uma boa alternativa nesse sentido”, avalia.
Fraternidade
“Antes, tínhamos um contato maior com quem morava próximo de nós. Hoje, a vizinhança muda com mais frequência. Com isso, não conhecemos quem mora ao nosso lado”, avalia Caroline Santos de Souza, 28, freira da Congregação das Irmãs Operárias da Santa Casa de Nazaré.
Na avaliação dela, além da tecnologia e do profissionalismo, praticar a fraternidade é essencial para um bom convívio social. “Acho que o caminho para uma boa convivência é sempre o caminho do diálogo. O papa Francisco nos lembra que a sociedade, para crescer, precisa construir menos muros e mais pontes. O diálogo e a fraternidade são algumas dessas pontes. Precisamos lembrar que não vivemos sozinhos, precisamos nos reconhecer como irmãos. Este é o caminho”, aconselha.
0 comentários